Dizem que todos temos um propósito. E eu não sabia qual era o meu, até começar a fazer aquele percurso diariamente. Todos os dias pisava o mesmo chão. Havia pessoas que via todos os dias, algumas pessoas repetiam o mesmo percurso que eu dia após dias, após dia. E depois havias tu. Era frequente ver-te. Passar por ti, tu passares por mim, passarmos um pelo o outro.
Não sabias quem eu era. Cruzavamo-nos como milhões de pessoas em modo robô se cruzam todas as manhãs, em todo o mundo.
E eu também não tinha ideia de quem eras, mas acho que, com o tempo, acabei por saber mais de ti do que tu de mim.
Olhavamo-nos em silêncio todos os dias. Não sei se me vias, não sei se me observavas como eu a ti, não sei se ficavas a olhar quando passava por ti. Não sei se pensavas em mim, se falavas sobre esta miúda que vias menos de um minuto por dia. Nem se quer sei se pensavas nesse cruzamento, como eu. Nunca falavamos. Nunca falámos.
Aquele cruzamento tornou-se rotineiro. Aquele cruzamento de corpos tornou-se frequente. Aquele cruzamento de olhares tornou-se quase um desejo matinal. Aquele cruzamento de sorrisos tornou-se no auge do dia dela. Aquele vulto começou a ganhar forma, a ganhar cor. Até que as mãos se cruzaram também. Depois ganhou cheiro, ganhou som, ganhou textura, ganhou sabor.
Havia fogo naqueles olhos.
Ela estava completamente apaixonada, ela acreditava em tudo. Ela olhava o mundo com um olhar cheio de esperança, cheio de cor. Ela abraçava os sonhos como se fossem sempre uma possibilidade: se viver um sentimento daqueles era possível, qualquer coisa seria possível dali para a frente.
Ele era todo o romance que ela alguma vez tinha pedido, toda a história de encantar.
Aliás, sonho todas as noites. Umas vezes sonho a dormir, outra vezes sonho acordada e outras vezes vivo o sonho: o sonho de te ter, o sonho de me encaixar tão perfeitamente nos teus braços e em ti, o sonho de acordar o teu sorriso e de despertar o meu. Mas hoje sonhei contigo.
Estavamos numa sala a meia luz. Nenhum de nós se via completamente lá, apenas vultos por de trás das cortinas de tule em tons pastel... acho que estávamos em lados opostos. De repente, começa a tocar aquele clássico que eu adoro do Dirty Dancing , como se fosse preciso uma música para me dizer que os meus melhores momentos da vida são nos teus braços.
Engraçado. Acho que depois de tanto tempo, nunca te tinha visto, se quer, gingar o passo e ali estavas tu, tal Patrick Swayne, de cabelo desgrenhado, mas no sítio certo e camisa branca desapertada no decote e a abanares-te ao som de Time of my Life. Ao menos, ali, tive a certeza que também tu sentias aquilo que era dito na música. Acho que acertámos os passos... Não tenho a certeza porque o meu eu no sonho estava concentrado no teu rosto: no sorrito maroto e sincero, nos lábios que o soltavam tão deliciosamente e no olhar atrevido mas apaixonado. Não sei se não pareceríamos dois bobos a dançar por ninguém, numa sala de tule pastel a meia luz. Não sei se não pareceríamos espelho um do outro, de tão embrenhada que estava no teu rosto: aposto que a minha expressão seria a mesma.
Lembro-me que dançámos. Dançámos muito como se sempre tivéssemos feito aquilo. Dançámos tão intensamente que acho que teríamos envergonhado qualquer par de bailarinos campeões. Dançámos como se a nossa vida dependesse disso. E como eu gostei de dançar contigo!
Não sei porquê... Não me perguntes porque sonhei com tal cena épica, de um catálogo de romantismo. Não me perguntes porque dançámos. Não me perguntes porquê aquele enredo todo... Toda aquela perfeição.
Dançámos. Rodopiámos. Chegou a parte da música em que a Baby é pegada ao colo. E tu, tal Johnny Castle, pegaste em mim, como se tivéssemos ensaiado aquela cena um milhão de vezes! Não houve falha de um passo, de um tempo, de um gesto... E beijaste-me, comigo lá no ar.
Não sei se no mundo dos sonhos já alguma vez me terias beijado, porque senti todo o tipo de arrepios de quando há um primeiro beijo. Mas ali ficámos, depois do beijo, depois de me baixares, depois de a música terminar. Perdemo-nos nos olhos um do outro. Perdemo-nos nos lábios um do outro. Perdemo-nos um no outro e encontrámo-nos um para o outro.
Roubaste-me um segundo beijo. Eu percebi que não adiantaria o número de vezes que me beijarias dali para frente e que provavelmente, mesmo em sonhos, não fazia diferença se aquele seria o primeiro, o décimo ou o milésimo beijo: a sensação de pertencer ali, de pertencer a ti e todos aqueles arrepios ia acontecer sempre.
E depois percebi: talvez o sonho tenha sido a melhor analogia perfeita para nós... Que outra forma demonstrar toda a nossa sintonia e musicalidade se não dançando de forma tão perfeita, ao som de um dos mais românticos clássicos do cinema? Talvez fossemos mesmo o espelho um do outro.
E agora, acordei. E enquanto esfrego os olhos e me apercebo daquele sonho tão incrivelmente natural, olho para ti aqui adormecido, com o mesmo sorriso bobo. Aposto que se tivesses os olhos abertos, seriamos um inevitável espelho um do outro.
Ignoro o sol a espreitar lá fora, depois de uma semana enevoada e enrolo-me em ti. Mais uma vez, solto um suspiro profundo, confirmando o quanto pertenço a este lugar. E dançamos de novo, de olhos fechados e com os teus braços à minha volta. E eu que acordei de um sonho contigo, volto a sonhar, conscientemente e de peito a saltar.
É fácil gostar do brilho que me trazes, da energia que me dás, dos sorrisos aparvalhados que faço por ti, mesmo sem motivo. É fácil gostar de cada traço teu. Gosto de ti sem esforço e sem necessidade de saber porquê. Às vezes não gosto de gostar de ti: não gosto que me deixes ansiosa porque demoras, não gosto de ficar nervosa porque não falas, não gosto de me sentir insegura porque não estás. Às vezes seria bem mais fácil se não gostasse de ti... mas é tão mais fácil gostar de ti e do teu toque e do teu beijo. Gostar das conversas que temos, das conversas que não precisamos de ter e das conversas que deixamos para depois dos nossos momentos. Gostar do teu abraço apertado e da forma como me envolves, quando me sinto a coisa mais frágil e mais segura do mundo, porque nada pode acontecer ali dentro. É tão mais fácil gostar de olhar para ti, mesmo quando não estás a ver... (principalmente quando não estás a ver). E eu gostava de me controlar mais no que te diz respeito, mas é tão difícil deixar de ser de ti e de me sentir de ti.
Dizem que o que fica entre as palavras, como gestos e expressões é o que mais importa e eu olho-te sem tu veres, a tentar decifrar isso. Não é fácil decifrar-te. E gostar de ti é tão mais importante que me perco. Só te olho. Só gosto. Só me perco em ti. Às vezes olho-te sem pensar em nada. Às vezes olho-te e penso em todo um mundo de coisas. Às vezes olho-te e perco-me. E enrolo-me em ti, porque lá fora não há mais nada enquanto estiver assim.
E quando te vais embora, era tão mais fácil não gostar de ti! Porque o corpo amolece. O corpo arrefece. O mundo arrefece. O mundo acontece... começa a acontecer. E eu não gosto que o mundo aconteça assim. Não gosto do mundo sem ti. É tão fácil não gostar do mundo. E é tão fácil gostar de ti no meu mundo. E eu noto que não tens noção de quanto é fácil gostar de ti.
E eu gostava das tuas palavras, de como parecia que sabias sempre o que dizer. E eu acredito nas tuas palavras, como se fossem a única coisa real no mundo. Às vezes preferia não gostar das tuas palavras, porque não as percebo. Mas as tuas palavras parecem tão certas quando as dizes. Às vezes preferia não acreditar nas tuas palavras, às vezes acho errado acreditar nas tuas palavras... Mas as palavras são tuas e é tão fácil gostar de ti: como não gostar delas também?
Se me perguntas o que eu gosto para estar contigo, eu não sei o que responder. Às vezes acho errado gostar de ti, mas depois descubro mais alguma coisa que gosto em ti. É difícil saber o que me prende a ti... até porque eu odeio tanta coisa em ti: odeio a tua ausência, odeio o teu silêncio, odeio não te perceber, odeio que não me deixes perceber-te mais. Odeio ver-te ir, odeio não poder fazer-te ficar e odeio deixar-te ir. Odeio a ansiedade, o nervoso, a insegurança. Odeio o medo de estragar tudo ou de deixar tudo ir.
Odeio que seja tão fácil gostar de ti... Mas eu gosto tanto de gostar de ti!
Se havia altura em que queria estar acordada era neste momento.
Nunca quis tanto estar acordada, estar desperta para um mundo que encarava de tal forma em modo robô que acabava por ignorar tudo o que sentia, tudo o que surgia de novo e pudesse despertar de novo. Dormir era demasiado doloroso... quer dizer, nem há certezas que se pode chamar-se “dormir”, visto que parecia estar com os sentidos mais despertos do que quando tinha os olhos abertos. Era incrível como o inconsciente conseguia ter todo este poder infalível para manter desperto uns sentidos que durante o dia pareciam adormecidos ou dormentes. A verdade é que ela precisava de dormir… há dias que as insónias a atormentavam como se o inconsciente precisasse mais de estar acordado e viver do que ela própria, conscientemente, vivia durante o dia.
Não adiantava o esforço de se deitar cedo: os olhos poderiam estar fechados, mas ela via como nunca. E se tentasse aguentar acordada, para não ter de reviver tudo aquilo mais uma vez e outra vez e outra vez … e outra vez, eram tentativas em vão. Um falso cansaço atacava furtivamente, deixando-a com os seus pensamentos involuntários a que um dia poderia ter correspondido a palavra “sonho”. E ela, conscientemente ou inconsciente, deixava-se sonhar. Deixava-se vencer pelo cansaço de não conseguir combater aquilo. Porque é que custava tanto deixá-lo ir? Passado tanto tempo, como poderia ainda estar tão presente?! Passado tanto tempo como poderia mantê-la tão acordada durante a noite e tão adormecida durante o dia!? Como poderia ela sentir mais durante o sono que durante o resto da vida? Como era possível sentir tanta coisa ao mesmo tempo e ignorar o que o resto do mundo tinha para oferecer?!
Ela queria desesperadamente deixar-se levar pelo mundo, aceitar de braços abertos a alegria de todos os dias, os pequenos sorrisos de rua, os pequenos pormenores sobrenaturais da natureza, queria estar disposta a todo aquele mundo lá fora, tão perto dela… e ao mesmo tempo tão longe! E neste momento, voltar a acordar para o mundo parecia tão impossível, tão improvável de voltar a acontecer, tão longe de alcance… e ela dava mais uma volta na cama, como se abafar o lado esquerdo conseguisse abafar mais alguma coisa não tão física… Ela sabia que não. Ela tinha plena consciência de que nada do que fizesse agora ia resultar. E virava-se, revirava-se, voltava-se e voltava a voltar-se e a virar-se às voltas. Em vão. Em vão porque a única coisa que podia parar aquilo continuava feito barata tonta, às voltas, num vazio… e deixando-lhe, também a ela um vazio. E depois de tanto tempo… depois de tanta magia, depois de tanta vida, tanta revolta, tanta confusão, tanta mágoa, tanta luta, tudo o que ela tinha era aquele vazio tão cheio de tudo e que a fazia sentir sem nada. Ela não sabia de nada. Ela não saboreava nada. Ela não sentia nada. Ela era nada e ela… Ela… Ela desta vez conseguiu o que mais ansiava.
Acordou.
Finalmente, o momento mais esperado daquele sonho: o fim.