A ti, Vida.
E mais uma vez, do mais nada que há, tu surpreendes-me.
Tu trazes tudo de volta: o que eu quero, o que eu não quero, o que eu queria do fundo do meu ser não querer. Trazes-me o novo e o velho, o igual e o diferente, o desejo e a indiferença. Claro que desta vez não podia ser diferente: tinhas de ser tu, como sempre foste e trazer-me o passado de rompante.
Claro que a sua ausência me saudava todos os dias, claro que era impossível não pensar, claro que imaginar o que podia estar a fazer era inevitável... claro que, depois de tudo, era anormal se isso não acontecesse.
Claro que a ideia de nos cruzarmos me assustava, claro que havia perguntas que me fazia.
É óbvio que segues, mas as memórias e o coração não tem tanta vontade de ir como eu. Claro que marcou, claro que queria deixar tudo ir... E claro, claro que não podia ir. Não podia ir porque nunca fez o que quis e era tão mais fácil que fosse! Era tão mais fácil se fosse só eu querer! Era tão mais fácil que fosse tudo uma miragem minha e que não fosse recíproco, porque eu aí iria deixando ir.
Claro que marcou e que depois não podia ir. Claro que não foi, porque nunca fez o que eu queria.
Porque depois tu segues e regressas, como um iô-iô, como se eu fosse uma marioneta à tua vontade. E sou... acabo por ser e seguir contigo. Acabo por ser a tua marioneta em vez de conseguir ter eu todo o controlo sobre ti que devia. Dás os passeios que queres, levas o teu tempo, e voltas como se nada fosse, parando quase que no mesmo sítio, lembrando-me que sou uma formiga, assolapando o meu coração como se nada mais importasse. Como se tu não dependesses do seu bater, porque dependes, sabias?!
E quando chegas assim de repente é impossível prever-te, conter-te, controlar-te, controlar-me, respirar, pensar, ser. E o meu corpo reage, tremendo, à tua reviravolta. O meu corpo amolece, como pasta de modelar, para moldares a teu bel-prazer. O meu coração deixa, irresponsavelmente, de me responder. A minha alma fica cega. Os meus sonhos mudam - ai e mudam tanto! Mudam tão de repente!! Mudam com a mesma velocidade com que tu embates em mim e me dás outro, e outro, e outro choque de realidade!
Toda eu me renovo, me refaço, me faço existir. Toda eu me obrigo a respirar profundamente, pensar conscientemente, ser prudente. Toda eu me controlo, me tento controlar, me vou descontrolando. Como se me deixasses ter tempo para tal! Tola desta sonhadora que não tem o controlo sobre ti - sobre a sua própria vida! Mas, em minha defesa, tu aconteces tão depressa que me deixas atordoada, dispersa, suspensa e afundada numa atmosfera de desejos que pensava ter perdido.
E tu tinhas de acontecer... Óbvio que tinhas. Tu e o resto.
E, mais uma vez, tinhas de fazer com que tudo batesse certinho. Tinhas de fazer com que tudo fizesse o mais certo dos sentidos e que os meus sentidos ficassem todos trocados. Tinhas de fazer com que tudo fosse mágico e inesperado, ou não me pertencesses.
E eu chego a um ponto em que já não sei se sou eu que te faço acontecer ou se aconteço por causa de ti. Eu chego a um ponto que não sei se sou eu que fantasio com tudo sintonizado ou se, efetivamente, tudo está em sintonia. É escusado: não resisto à minha resistência, não resisto à tua invasão. Mas, em minha defesa, tu aconteces com tanta intensidade que me perdes, me elouqueces, soltas e me envolves num mundo perigoso que achei conseguir dispensar.
Já que te complicas tanto, podias facilitar-te-me a mim, não?! Podias mostrar-me um pouco do que pretendes, podias acontecer devagar... podias fazer o meu corpo não ceder às tuas vontades, podias fazer o meu sorriso ser desenhado só quando fosse seguro e fazer o coração bater sem fazer barulho, sem que todo o mundo soubesse que ele está a bater tanto, pelo que tu fizeste, de novo, acontecer. Podias, ao menos, deixar-me prever-te para me preparar. Podias preparar-me para ti. Podias responder-me a algumas coisas, deixar-me esclarecer alguns dos pontos de ti que precisam de definição clara.
Podias, por favor, às vezes não ser tão confusa? É que há coisas que são óbvias que eu não percebo como deixo que aconteçam.
Claro que a saudade aparecia, claro que os pensamentos eram inevitáveis... claro que depois de teres acontecido e teres tomado dois caminhos diferentes, era anormal se isso não acontecesse.
Claro que a ideia de nos cruzarmos me assustava.
E claro que eu não sabia assim tão bem se queria ir como como queria que as memórias e o coração fossem. Claro que foi intenso e que por isso não iria desaparecer assim. E claro, claro que não podia ir! Não podia ir - não completamente. Como poderia ir se a ideia seria voltar?!
Claro que não foi, porque nunca fez o que eu queria.
E, para mal dos meus pecados e do meu coração, ainda bem.