FÉ.
Os últimos dias tinham sido estranhos, como se estivesse à espera de algo que não sabia o que era: como é que se pode esperar o que não se sabe que vai chegar?! No entanto, lá estava eu, alienada ao mundo exterior, a tudo o que não parecia novidade, a tudo o que era o mesmo de sempre, a ignorar qualquer coisa que fosse diferente, a repetir a rotina de forma automática, tal robot.
E depois, eis que a meio da rotina o meu inconsciente se sobressalta: de um lado eu, do outro lado algo que podia, perfeitamente, ser teu. Óbvio que isso já fazia parte da rotina: os sobressaltos do meu inconsciente (e do meu coração) a pensar que te tinha posto a vista em cima; o bater acelerado a tentar perceber se eles tinham razão (como se o inconsciente pudesse ser racional no que toca a ti); o olhar nervoso a tentar desvendar vultos e caras, e estilos, e letras e cores; a aceleração da memória visual a tentar desvendar (desvendar a paisagem, a vida, a possibilidade de algo ser teu ou de seres tu).
Mas ali foi diferente.
Ali, o meu mundo quase que ficou em pausa para poder confirmar(-te). Ali, a rotina passou em cima de uma ponte, por cima de um rio. Ali, eu saltei mesmo. Eu parei mesmo, enquanto as outras vidas corriam. Ali o meu coração passou de acelerado a tão rápido que parecia parado. Eu parei, qual cena idílica, especada a olhar para uma silhueta que poderia tão bem pertencer-te como eu te queria pertencer. E o resto corria, quase que em velocidade de Fórmula 1. E parecia que só eu... Aliás, só eu e Tu (ou o possível "TU") estávamos parados, especados, a deixar-me estudar aquele enredo em pormenor - e a assumir aquela silhueta com o maior foco que os meus olhos já fizeram.
O problema foi esse: foi o "parecer", foi o ser apenas um "possível tu", foi o facto de só eu ter ficado especada e o resto do mundo correr - correr muito... CORRER TANTO! Foi, como sempre, ter sobressaltado o meu consciente, acelerado o meu coração, ter saltado, ter olhado nervosamente e ativado a minha memória. Porque ela percebeu que não eras tu e desde o início que isso era óbvio. Óbvio que não podias ser tu desde o início.
E ali estava eu, especada, a olhar para alguém que não eras tu... A olhar, portanto para ninguém, enquanto o mundo corria e o resto da vida acontecia: enquanto o coração se desapontava, mais uma vez pela falta da tua existência, pela persistência da tua ausência, pela saudade de te ver e te tocar.
Ali estava eu, congelada debaixo de um por do sol primaveril, enquanto o resto sucumbia à rotina de fim de dia e enquanto a minha memória racionalizava mais que todo o meu corpo todo junto, enquanto o meu coração desacelerava com a incerteza do que faria se fosses tu e do que talvez o eu - ou parte de mim - faria.
E eu poderia contar toda uma história do que aconteceria se fosses tu.
Contar uma história para cada uma das hipóteses: da hipótese de mesmo assim não me veres e apenas eu estar especada a olhar para onde poderias estar tu, da hipótese de nenhum de nós se ver - se cruzar, se olhar, se sorrir, se tocar, se abraçar... Uma história de todas as hipóteses que poderiam haver.
Até poderia contar a história do que aconteceria se fosses tu, e eu te visse, e tu me visses, e nos olhássemos pelos intervalos entre cada carro, cada vidro. A história de ficarmos os dois, naquela ponte, separados por filas de metal colorido, a estudar o futuro de cada um, qual matemática complicada, ao sabor do vento, iluminados pela luz crepuscular, ao som da minha banda sonora preferida, que tanto me lembra de ti e me gritava, naquele exato momento ao ouvido.
Poderia contar a história daquele reencontro inesperado, ansiado, enervante e já retratado. A história do que aconteceria assim que os meus olhos te avistassem, do que aconteceria no tempo massivo em que não nos tocássemos. Poderia contar a história em como, enquanto passavam inúmeras vidas entre nós, a separarem os nossos toques, eu sabia que os nossos corações se iam falar. A história em como eu sabia que parte de mim e parte de ti já se estariam a entrelaçar, só com a possibilidade estarmos ali a meros metros de distância, se efetivamente fosses tu. A história de como um vulto meu e um vulto teu se tocariam tão antes de nós, dançariam sobre a cidade, ao por do sol. A história de como eles se abraçariam e como eu gostaria de te abraçar também. E é inevitável não imaginar isso quando a possibilidade de te estares a cruzar comigo acontecer. E é inevitável não levitar com esse desejo, é impossível desgostar dele. E eu que queria tanto que fosses tu!
Só que não eras, então talvez essas histórias fiquem para depois.
Mas, mesmo depois de me terem roubado tão insensivelmente a possibilidade de te ver e como se o céu, a ponte, o rio, a cidade fossem testemunhas dessa desilusão e desses microssegundos de êxtase, apesar de eu lutar tanto para racionalizar e controlar essa vontade tão selvagem, evitar ter as expectativas tão elevadas e a esperança tão aguçada, tão intensa... eis que o mundo me quis deixar uma nota indiscreta, clara e imperdoável: FÉ.
Depois de desaparecer qualquer hipótese de seres tu ali, depois de ter decido continuar o meu caminho em direção ao dia seguinte, e como se não tivesse havido estranheza suficiente nos últimos dias, e sem eu, nem tu ou ninguém poder perceber se foi o vento, a água, a magia da cidade dos amores, tudo isso ou qualquer outro ícone a favor de ti na minha vida, a mensagem surgiu do nada, como uma bofetada: FÉ.
E eu tenho a certeza de que se já não fosse maluca o suficiente para acreditar em magia ou para já ter somado todos os sinais que têm surgido à tua volta, naquele momento eu não teria dúvidas: FÉ.
Juntaram-se duas letras diante dos meus olhos, que eu pisquei para ter a certeza de que o que via era real. Era.
E a fé ficou.