Sob Azevinho
Sentia-se agora toda aquela agitação que refletia ansiedade da primeira vez. Desde de manhã que já a sentia dentro de mim com mil anjos a voar dentro do meu estômago, mas agora era diferente. Agora sentia-se cá fora. Sentíamos todos.
Sentiu-se a multidão, ouviam-se os cumprimentos habituais de quem nunca se viu, os sorrisos de "co-licença", os sorrisos de "desculpe" e de "obrigado". Ficou lusco-fusco lá fora, com meia dúzia de focos de presença. Fez-se silêncio. Abriu-se a nossa porta para o mundo. Acendeu-se o sol sobre o outro lado da porta.
Cada um assumiu as suas posições. E apresentações e diálogos e monólogos e gestos e dramas - talvez apenas mais dramas do que o costume. Ouviam-se risos de vez em quando. Trocavam-se olhares lá e cá. Trocávamos olhares. Cruzávamos olhares. Olhos nervosos, tremeliquentos. Chegou a nossa hora. Chegou aquela hora.
...
A cortina fechou. Mantivemo-nos nas nossas posições para a despedida. Mantivemo-nos, então, entrelaçados, de lábios encostados e eu com o pé esquerdo no ar. O cenário continuava com as luzes acesas num quadro natalício épico, com árvores despidas, pintadas de branco e os focos divididos entre pisca-piscas brilhantes de Natal e estrelas fulgentes.
E aquele visco-cupido. O azevinho por cima de nós, pintalgado de neve que de tão branca, naquele cenário, parecia tão verdadeira, para provocar um beijo. Como se fosse preciso todo um cenário romântico daqueles para haver um beijo. Como se fosse preciso um ramo de azevinho para haver um beijo. Como se fossem precisos ensaios, enredos, cenários do que quer que fosse. Tudo pensado ao pequeno pormenor, tudo organizado com tempos perfeitos, músicas perfeitas, ambientes perfeitos, palavras perfeitas. E nós. E os outros... para os outros... e nós. Talvez também para nós, porque talvez fosse mesmo preciso azevinho...
Apagaram as luzes do lado de cá e um momento que era suposto durar uma fração de segundos, congelou (n)o tempo. Será que congelámos também? Será que todo aquele cenário tão epicamente realista, inspirado em qualquer canto do mundo com uma aldeia de natal tão perfeita, de tanta neve que tinha, nos terá congelado realmente também? Será que nos importávamos assim tanto se realmente tivéssemos congelado?
Não sei quanto tempo ficámos presos a uma cena tão libertadora. Não sei quanto tempo estivemos assim. Não sei quanto tempo desejámos ficar assim. Não sei se o nosso para sempre não se passou naquele tempo infinito que ali estivemos.
A sala foi ficando vazia, não sei se os ecos que ouvimos eram as pessoas a irem embora ou nós a isolarmo-nos das pessoas... mas o silêncio era cada vez mais. E nós continuávamos como no início desta mesma cena... Estaríamos ainda a representar? Seríamos ainda duas personagens? Será que alguém nos estava ainda a ver? Será que nos iam aplaudir quando nos largássemos? Será que tinha corrido bem?
Deixei de pensar. Sentia as minhas mãos à tua volta de forma diferente. Tremia, portanto não tinha congelado... Mas, mais uma vez, estaria a tremer por causa daquela neve tão verdadeira? E tu, como estarias? O que te estaria a passar pela cabeça? Sentia as tuas mãos à minha volta de forma diferente... com força. Como se fosse preciso agarrares-me, se quer... Como se eu fosse fugir. Estarias a pensar que, de alguma forma, eu teria de estar num outro lugar? Quereria eu estar noutro lugar?
Como se depois deste azevinho eu pudesse estar num outro lugar... ou de outra forma... ou sem ti. Depois deste "visco-cupido"... Como se fosse preciso um ramo de azevinho para haver um beijo... Talvez para nós, tivesse sido mesmo preciso...
Apagaram as luzes que faltavam.
Se calhar não tinha passado assim tanto tempo.