Subi as escadinhas que davam até à tua porta e toquei à campainha como se fosse a primeira vez.
Era inevitável não me arrepiar ao chegar ali e em pensar em todas as hipóteses e histórias que se viveram e não poderiam esperar do outro lado da porta... estarias como eu? Eu tremia por dentro, vibrava de vontade de te abraçar, tinha o coração a mil com toda a conversa que nos levou até este ponto, tinha um aperto no peito com a possibilidade de estares a precisar tanto de mim como eu de ti, naquele instante.
Abriste a porta e olhámo-nos de alto a baixo como se fosse a primeira vez que nos víamos – talvez fosse a primeira vez que alguém realmente nos via em muito tempo. Segui-te como se estivesse nos corredores de um museu, um caminho que parecia um labirinto, entre umas paredes que se sentiam demasiado estreitas para a tensão e ansiedade que estava a gritar dentro de mim. Deixei-te levares-me onde me querias, deixei-te guiares-me pelo espaço, como achavas melhor. A minha ignorância do que fazer contigo (connosco) era demasiada! E não estava a conseguir ignorar, de todo, a vontade de te agarrar, de te acalmar, de te encostar ao meu peito: sem prudência, sem jeito, sem trejeitos, sem medos, ou desconceitos, ou segundas intenções.
Cada passo que davas, puxava-me mais para ti e tu, aí do teu canto, se calhar nem percebias. Estarias como eu?
Era inevitável não gostar de toda aquela situação. De toda aquela história que estavamos a criar quase de repente, quase sem querer, como se fosse a primeira vez.
E, de repente, tu paraste e viraste-te para mim. Olhaste-me de alto a baixo e viste-me como se nunca ninguém me tivesse visto, como se eu fosse a única pessoa à face da terra, parecias estar a estudar cada um dos meus traços, dos meus cantos, parecias decorar cada um dos meus sinais. Arrepio na espinha. Senti-me como se me estivesses a criar à medida que os teus olhos percorriam cada milímetro meu e eu ia aparecendo diante de ti, despida de noções e teorias. Senti o meu corpo aparecer como nunca, e senti a minha alma derreter aos teus pés. Senti-me como se finalmente alguém me visse – alguém me quisesse ver. Arrepio na nuca. Estarias como eu?
Estendeste-me a mão, e a minha não se inibiu nem um pouco em aproveitar o embalo. Puxaste-me para ti, assim que os teus dedos sentiram os meus. Os nossos corpos esbarraram como se fosse a primeira vez e senti mais um arrepio em mim, que desta vez levou exatamente o mesmo percurso que os teus olhos tinham feito momentos antes. Agora sim, era inevitável não gostar de toda aquela situação... Sensação. Os meus sentidos cruzaram-se dentro de mim: euforia, harmonia, sinfonia, poesia. Vi o filme da minha vida diante dos meus olhos, naquele instante. Vi todo um futuro desenhado pela minha imaginação e adivinhei cada toque, cada carinho, cada palavra silenciosa que se seguiu. Estarias como eu?
Despedimo-nos da vida, da rotina e do dia. Despimo-nos de nós . Focámos no ninho que tinhamos encontrado um no outro - e não importava o tempo lá fora. Ouvia-se chuva, ouvia-se vento e trovoada: sentiamos sol, sentia-te Sol. Fogo. Escutámos silêncio, escutámo-nos no silêncio. Dançámos corredor fora: descoordenados, como quem não sabe dançar (e não faz ideia do que vai acontecer) mas tão sincronizados! Embebedámo-nos um no outro (um do outro). Mergulhei nesses olhos que pareciam ver-me por dentro, que pareciam querer ler-me por completo. Tropecei, quase sem querer em ti e aterrei, sem proteção, em tudo o que éramos naquele momento. Fechei os olhos e segui guiada pelo magia do inesperado.
Não sabia o que viria dali. Tu saberias? Terias estudado tudo, como me estudaste a aura?
Eu não fazia ideia... mas aquela dança desmedida de olhares, aquela sintonia de arrepios, aquela explosão de sentidos, auguravam tudo de bom.
Sendo ela o teu horizonte e a primeira coisa que a tua vista alcança quando olhas da tua janela. É nela que os teus olhos pousam quando te distrais (ou será ela que te distrai quando os teus olhos se cruzam com ela?), deixaste-te enterrar nela, deixa-la envolver-se em ti. Deixa-la cruzar no teu caminho, acompanhar-te numa caminhada tantas mais vezes que eu!
E as vezes que deitas a tua cabeça nela em vez de a deitares em mim?
Quantas vezes a areia dessa praia já te abraçou e colou a ti... quantas vezes já sentiu o calor do teu corpo? Quantas vezes essas ondas já encontraram o teu peito... já se encontraram no teu abraço? Quantas vezes essa espuma beijou a tua pele?
E logo eu que gosto tanto de praia, fui assolada por este ciúme da tua praia. Só imagino as vezes que já te perdeste por aí, as vezes que já te despiste para ela... Torna-se difícil não invejar a sorte dessa paisagem, que já te teve como parte integrante e eu nem hipótese de admirar esse momento tive. Torna-se difícil resistir a um ciúme louco de imaginar que te toca mais vezes que eu. Torna-se impossível não desejar loucamente ser essa praia, ou ter, pelo menos, um pouco da sua sorte.
A sorte de ver esse teu sorriso, de se poder perder nos teus olhos e de os fazer brilhar. Lotaria de milhões, o poder ter-te a deitares-te sobre ela.
É... definitavamente, invejo a tua praia. As visitas que lhe fazes, a sensação que te faz sentir, a vontade que tens de a ver, e o poder tocar-te tanto mais que eu. Definitivamente, emulo-a . No entanto, como posso criticar se faria o mesmo à mesma oportunidade? Se te deixaria perderes-te em mim ao primeiro resquício da tua vontade de o fazeres?
Tenho a certeza que esta inveja me faria ladra: roubaria a sorte dessa tua praia sem pestanejar. Não tenho dúvidas de que esta inveja me transformaria em bruxa: aprenderia todos os truques necessários para quebrar essa maldição que ela te lançou - ou todos os feitiços para que essa sorte fosse minha. Não hesitaria, convictamente, em trocar de lugar com ela e te beijar de cima abaixo, abraçar-te e enroscar-me em ti - seria , prontamente, um desses grãos de areia que levas para casa.
No entanto, trocaria a sorte desse sítio, por ser eu a tua sorte. Ser a tua sorte para nos perdermos juntos nesse por de mar, nessas nuvens de espuma, nessas ondas de sol... nessa tua praia invejável.
O relógio da igreja dava as onze badaladas previsíveis, mas que rezava por não ouvir. O sino bateu pesado como de costume, e insistente em fazer-se escutar. Gritou comigo o passar do tempo e eu fechei os olhos e concentrei-me no som que ecoava dentro da minha cabeça. Concentrei-me num "aparece" que teimava em não se representar. Devia saber: devia saber que tardarias a chegar ou que, como sempre, não virias de todo. Mas eu, como sempre, queria-te esperar. Eu, como sempre, iria esperar-te e esperar a desilusão que a tua ausência, inevitavelmente, iria trazer.
Parei, na minha varanda de onde tantas vezes te vi chegar, e virei o meu olhar para uma torre de igreja que tantas vezes admirei e que hoje parecia disforme, assustadora, tão cheia de si, tão pintada de realidade.
Voltei a repetir silenciosamente um "aparece" , como quem se perdeu num mísero toque de sino, sem se quer perceber que aquelas onze não se repetirão. Quantas delas já teriam passado? Quantas badaladas, quantas horas, talvez quantas oportunidades, teriam passado? Perdi-me num eco tão inexistente como a tua presença, num toque que me tocava a alma agora tanto quanto tu havias tocado, num som tão áspero como o silêncio da tua não-chegada.
E o relógio da igreja continuava a tocar, numas badaladas épicas de vontade e desejo, num sforzando incessável, num contar de horas que parecia marcar muito mais do que o impacto de doze badaladas, quando ainda faltava uma hora para elas. Ou ter-me-ia eu perdido no meio de um tempo indiscreto e volátil? Teria eu descrito uma torre de igreja enquanto esperava a tua vinda, que demorava agora uma hora a mais?
Olhei para o velho relógio na parede da cozinha, com vontade que este momento analógico me trouxesse à terra, me chamasse à razão, me beijasse de realidade, como eu queria que tu fizesses: beijarias-me de realidade, e despirias-me a razão. Deixavas-me abraçar as nossas analogias, deixavas-me embriagar-me de ti, afogar-me nas tuas recompensas pelas falhas que se sucediam, deixavas-me enlaçar os meus dedos nas metáforas que tanto desperdiçava contigo.
Desperdiçar - o termo que se adequaria à cena que estava a fazer há precisamente pouco menos de nada e que já parecia tanto... talvez porque também tu me desperdiçavas, me desgastavas, me deixavas passar, me deixavas ir como o tempo ia agora comigo. Talvez porque eu me desperdiçava. Talvez porque eu desperdiçava o meu tempo à espera de um retorno que nunca chegaria.
E eu ouvia a torre da igreja com umas baladas que teimavam em não acabar, concentrava-me num "aparece" impossível, olhava da torre para a estrada e da estrada para a torre, na esperança de te encontrar perdido entre um alcatrão que se confundia com o escuro da noite. E tu estavas atrasado. Demasiado atrasado. Tardavas demasiado.
Tardavas, mas não falhavas.
Apareceste. Finalmente, apareceste.
E eu dali, a ver-te chegar, sabia que te receberia e desculpava, contra qualquer compromisso comigo mesma, contra qualquer ideologia ou conselho, contra qualquer réstia de orgulho, contra qualquer despeito: ceder-te era o meu maior defeito e a minha maior qualidade.
Ver-te era como um recarregar de baterias, um encher de um depósito, o saldar de uma dívida. A ampulheta do desastre foi virada, o cronómetro do desespero foi zerado. Eu, dali, a ver-te chegar, sabia que tardarias novamente e me vestirias de incerteza numas novas badaladas, numa nova lua, num mesmo contexto e num não tão diferente enredo... e tudo se tornaria a repetir: a tolerância, a paciência, a expectativa, a esperança, o nosso desperdício, o teu prazer em me desesperares, o meu descuido em te aceitar, o beber das tuas desculpas e o embebedar-me do teu todo.
Desta vez tardaste, mas não falhaste.
Numa outra vez, não tardarias em falhar. E eu, a ver-te chegar assim, sabia que te cederia novamente, eventualmente, certamente, descaradamente... desesperadamente.
Um dia desapareceste entre espuma branca e ondas altas, em direção a Sabe-se-lá-onde. Nesse momento, pensei-te navegante de outros mares para sempre, pensei-te explorador de outras costas, entusiasta de outras encostas, longe de qualquer vista mar.
Mas depois tu decidiste um regresso e aportaste no meu cais, de novo, quando te pensava entre ondas e marés. Aportaste no meu cais, talvez perdido de tormentosas tempestades, talvez oriundo de terras distantes, talvez, quem sabe, das profundezas do oceano, talvez indisposto da viagem, talvez sem saber onde o destino te traria.
Horas, dias, meses: o tempo que passara era-te desconhecido (na verdade, até para mim) e eu olhava para ti como se olhasse para o meu horizonte, sem saber como te acalmar deste teu fado impetuoso (se saber como me acalmar desta incerteza imprevisível), sem saber como esclarecer as dúvidas que terias, sem saber como te ler esse olhar impenetrável que diz o contrário do que os teus lábios pronunciam. A verdade é que, quando partiste, julguei-te perdido para sempre, julguei-me desprendida de ti, julguei solução as ruas mais distantes do porto de onde saíste e, agora, aqui estava eu: percorrendo todo o caminho de volta até à nossa margem, onde pensei nunca mais voltar e onde a altura da água é a mesma depois das lágrimas que lá deixei cair ao ver-te ir, passando pelas marcas da minha determinação deixadas na direção contrária nas pedras de calçada. A paisagem parece um pouco diferente agora que o teu barco está no cais: o sol parece mais brilhante, as ruas mais cheias de cor, as margens mais translúcidas.
E eu aqui, a esperar por te receber de novo neste teu regresso, rezando para que acredites que teremos a melhor vista mar do mundo inteiro.
" Achas que posso ter mais um beijo? Eu encontrarei o final nos teus lábios e depois vou.
Talvez também mais um pequeno almoço, mais um almoço, mais um jantar. Eu estarei completa e feliz e depois podemos separar-nos.
Mas, entre as refeições, achas que podemos deitar-nos uma vez mais? Mais um momento prolongado em que o tempo fica suspenso indefinidamente e eu pouso a minha cabeça no teu peito.
A minha esperança é que adicionarmos tantos "mais um" que equivalerão ao tempo de uma vida e nunca cheguemos à parte em que eu te deixo ir.
Mas isso não é real, pois não? Não há mais "mais um".
Conheci-te quando tudo era novo e excitante e as possibilidades do mundo pareciam não ter fim. E ainda são. Para ti. Para mim. Mas não para nós. Algures entre o depois e o agora, o aqui e ali , eu penso que não nos fomos separando... apenas fomos crescendo.
Quando alguma coisa parte, se as peças são suficientemente grandes, tu és capaz de consertar. Infelizmente, às vezes, as coisas não partem: elas estilhaçam-se. Mas quando deixas a luz bater, o vidro estilhaçado brilha. E, nesses momentos - em que os pedaços do que éramos apanharem sol - eu vou lembrar-me de quão bonito foi. De quão bonito será, sempre.
Porque éramos nós. E nós fomos magia. Para sempre. "
Excerto do filme da Netflix : SOMEONE GREAT / ALGUÉM ESPECIAL, com Gina Rodriguez.
(Não podia deixar de partilhar, esta despedida maravilhosa ao amor.)