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#EsteOutroMundo

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Aparece.

O relógio da igreja dava as onze badaladas previsíveis, mas que rezava por não ouvir. O sino bateu pesado como de costume, e insistente em fazer-se escutar. Gritou comigo o passar do tempo e eu fechei os olhos e concentrei-me no som que ecoava dentro da minha cabeça. Concentrei-me num "aparece" que teimava em não se representar. Devia saber: devia saber que tardarias a chegar ou que, como sempre, não virias de todo. Mas eu, como sempre, queria-te esperar. Eu, como sempre, iria esperar-te e esperar a desilusão que a tua ausência, inevitavelmente, iria trazer.

Parei, na minha varanda de onde tantas vezes te vi chegar, e virei o meu olhar para uma torre de igreja que tantas vezes admirei e que hoje parecia disforme, assustadora, tão cheia de si, tão pintada de realidade.

 

Voltei a repetir silenciosamente um "aparece" , como quem se perdeu num mísero toque de sino, sem se quer perceber que aquelas onze não se repetirão. Quantas delas já teriam passado? Quantas badaladas, quantas horas, talvez quantas oportunidades, teriam passado? Perdi-me num eco tão inexistente como a tua presença, num toque que me tocava a alma agora tanto quanto tu havias tocado, num som tão áspero como o silêncio da tua não-chegada. 

 

E o relógio da igreja continuava a tocar, numas badaladas épicas de vontade e desejo, num sforzando incessável, num contar de horas que parecia marcar muito mais do que o impacto de doze badaladas, quando ainda faltava uma hora para elas. Ou ter-me-ia eu perdido no meio de um tempo indiscreto e volátil? Teria eu descrito uma torre de igreja enquanto esperava a tua vinda, que demorava agora uma hora a mais?

 

Olhei para o velho relógio na parede da cozinha, com vontade que este momento analógico me trouxesse à terra, me chamasse à razão, me beijasse de realidade, como eu queria que tu fizesses: beijarias-me de realidade, e despirias-me a razão. Deixavas-me abraçar as nossas analogias, deixavas-me embriagar-me de ti, afogar-me nas tuas recompensas pelas falhas que se sucediam, deixavas-me enlaçar os meus dedos nas metáforas que tanto desperdiçava contigo. 

 

Desperdiçar - o termo que se adequaria à cena que estava a fazer há precisamente pouco menos de nada e que já parecia tanto... talvez porque também tu me desperdiçavas, me desgastavas, me deixavas passar, me deixavas ir como o tempo ia agora comigo. Talvez porque eu me desperdiçava. Talvez porque eu desperdiçava o meu tempo à espera de um retorno que nunca chegaria.

 

E eu ouvia a torre da igreja com umas baladas que teimavam em não acabar, concentrava-me num "aparece" impossível, olhava da torre para a estrada e da estrada para a torre, na esperança de te encontrar perdido entre um alcatrão que se confundia com o escuro da noite. E tu estavas atrasado. Demasiado atrasado. Tardavas demasiado.

Tardavas, mas não falhavas. 

 Apareceste. Finalmente, apareceste.

 

E eu dali, a ver-te chegar, sabia que te receberia e desculpava, contra qualquer compromisso comigo mesma, contra qualquer ideologia ou conselho, contra qualquer réstia de orgulho, contra qualquer despeito: ceder-te era o meu maior defeito e a minha maior qualidade. 

Ver-te era como um recarregar de baterias, um encher de um depósito, o saldar de uma dívida. A ampulheta do desastre foi virada, o cronómetro do desespero foi zerado. Eu, dali, a ver-te chegar, sabia que tardarias novamente e me vestirias de incerteza numas novas badaladas, numa nova lua, num mesmo contexto e num não tão diferente enredo... e tudo se tornaria a repetir: a tolerância, a paciência, a expectativa, a esperança, o nosso desperdício, o teu prazer em me desesperares, o meu descuido em te aceitar, o beber das tuas desculpas e o embebedar-me do teu todo.  

Desta vez tardaste, mas não falhaste. 

Numa outra vez, não tardarias em falhar. E eu, a ver-te chegar assim, sabia que te cederia novamente, eventualmente, certamente, descaradamente... desesperadamente.

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