Houve um dia em que abriste a tua mão e a deixaste ir.
Ela não queria, nunca quis, sempre fez força por ficar. Mas foram soltando as mãos, tu foste soltando as tuas mãos com aparente vontade... que podia ela fazer? Tentar puxar-te uma vez mais?! Tentar evitar o inevitável?! Adiar o inalterável?! Não podia. Não queria. Não conseguia. E tu conseguiste, em fim: abriste a tua mão e deixaste-a (ca)ir. E ela foi.
Ela foi a olhar para trás, mas seguiu. Teve de seguir. Tinha de seguir. E foi a olhar para trás, de passo lento, com vontade de voltar atrás. Mas não podia e teve de seguir. Ela tinha de seguir.
E depois o tempo passou. E ela foi deixando de olhar para trás, para deixar de tropeçar. Ela foi acelerando o passo para poder fugir das memórias de ti. Ela foi seguindo, como tu quiseste que fosse. Porque ela não queria, mas não podia voltar para o que já não existia, para o que tu - e só tu - não tinhas conseguido guardar.
Houve uma altura em que chegou ao fundo. Ela disse-me que tinha chegado ao limite, em lágrimas. Disse que ia recuperar-se um dia, acreditando na vagareza do processo. Dizia que o peso da alma não deixava que fosse de outra forma. Dizia que era tanta coisa, que não tinha leveza, nem a força necessária para fazer frente a esse peso.
Depois acho que foi perdendo peso em lágrimas. Acredita que chorou - eu vi-a chorar! Foi ficando mais leve, acredito... e talvez por isso tenha conseguido acelerar o passo. E depois foi começando a crescer - eu vi-a crescer! Transformou momentos em memórias, momentos em lições. Acho que não deixou nada para trás.
E assim, cresceu, secou, ganhou leveza, sorriu. Eu vi-a sorrir. E foi continuando em frente, de cabeça erguida, de passo mais acelerado. Olhar para trás era cada vez menos frequente. Ela foi aprendendo a viver assim solta, de mãos largadas. Dona de si.
A determinada altura perdi-a de vista. Acho que deve ter ganho asas. Tu disseste para ela ir e ela foi. Tu disseste para ela não ir, mas ela já tinha voado. Mandou mensagem: foi correr mundo.
Não sei se o mundo dos sonhos, se o mundo real, se o mundo literal. Acho que de tudo um pouco. E cresceu, dona de si. Não te esqueceu, porque era impossível isso acontecer. Mas aprendeu a gostar dela e das suas mãos soltas.
Aprendeu a gostar dela e do mundo. Reaprendeu a sorrir - eu vi-a sorrir como nunca, dona de si!
Houve um dia em que tu abriste a tua mão e a deixaste ir. E ela foi, com receio do que aí viria, mas foi. Foi e chorou. Foi e lutou. Foi e descobriu. Foi e mudou. Foi e voou.
Talvez ainda te ame ou talvez seja ainda o peso de toda uma história que se passou. Talvez te voltasse a dar a mão à primeira oportunidade ou talvez te desse de novo o coração, mas não a mão. Ou talvez nenhum dos dois. Nunca mais disse ter sonhado contigo e talvez isso seja um começo. Ou algum ponto de partida. Ou apenas um momento de pausa.
Ela agora traz determinação naquele coração - e no olhar (ai se tu alguma vez lhe tivesses conseguido ler o olhar. E o coração!). Ela às vezes perde-se, mas acho que sabe exatamente o que quer e só não o diz com medo de se expor. E ela está feliz: pode sentir falta de algumas coisas, mas está feliz. E determinada, principalmente em nunca mais se perder dela. Dona de si.
Houve um dia em que tu abriste a tua mão e a deixaste ir. E ela foi, porque teve de ir. Por ela, para bem dela, porque tu não a sabias mais ter. Houve um dia em que tu abriste a tua mão e a deixaste ir. Não a culpes, ela só fez o que tu pediste, como sempre.
Houve um dia em que tu abriste a tua mão e a deixaste ir. E ela voou e podia ainda não saber o que queria dali para a frente, mas ficou, com certeza, a saber o que nunca mais queria.
E mais uma vez, do mais nada que há, tu surpreendes-me.
Tu trazes tudo de volta: o que eu quero, o que eu não quero, o que eu queria do fundo do meu ser não querer. Trazes-me o novo e o velho, o igual e o diferente, o desejo e a indiferença. Claro que desta vez não podia ser diferente: tinhas de ser tu, como sempre foste e trazer-me o passado de rompante.
Claro que a sua ausência me saudava todos os dias, claro que era impossível não pensar, claro que imaginar o que podia estar a fazer era inevitável... claro que, depois de tudo, era anormal se isso não acontecesse.
Claro que a ideia de nos cruzarmos me assustava, claro que havia perguntas que me fazia.
É óbvio que segues, mas as memórias e o coração não tem tanta vontade de ir como eu. Claro que marcou, claro que queria deixar tudo ir... E claro, claro que não podia ir. Não podia ir porque nunca fez o que quis e era tão mais fácil que fosse! Era tão mais fácil se fosse só eu querer! Era tão mais fácil que fosse tudo uma miragem minha e que não fosse recíproco, porque eu aí iria deixando ir.
Claro que marcou e que depois não podia ir. Claro que não foi, porque nunca fez o que eu queria.
Porque depois tu segues e regressas, como um iô-iô, como se eu fosse uma marioneta à tua vontade. E sou... acabo por ser e seguir contigo. Acabo por ser a tua marioneta em vez de conseguir ter eu todo o controlo sobre ti que devia. Dás os passeios que queres, levas o teu tempo, e voltas como se nada fosse, parando quase que no mesmo sítio, lembrando-me que sou uma formiga, assolapando o meu coração como se nada mais importasse. Como se tu não dependesses do seu bater, porque dependes, sabias?!
E quando chegas assim de repente é impossível prever-te, conter-te, controlar-te, controlar-me, respirar, pensar, ser. E o meu corpo reage, tremendo, à tua reviravolta. O meu corpo amolece, como pasta de modelar, para moldares a teu bel-prazer. O meu coração deixa, irresponsavelmente, de me responder. A minha alma fica cega. Os meus sonhos mudam - ai e mudam tanto! Mudam tão de repente!! Mudam com a mesma velocidade com que tu embates em mim e me dás outro, e outro, e outro choque de realidade!
Toda eu me renovo, me refaço, me faço existir. Toda eu me obrigo a respirar profundamente, pensar conscientemente, ser prudente. Toda eu me controlo, me tento controlar, me vou descontrolando. Como se me deixasses ter tempo para tal! Tola desta sonhadora que não tem o controlo sobre ti - sobre a sua própria vida! Mas, em minha defesa, tu aconteces tão depressa que me deixas atordoada, dispersa, suspensa e afundada numa atmosfera de desejos que pensava ter perdido.
E tu tinhas de acontecer... Óbvio que tinhas. Tu e o resto.
E, mais uma vez, tinhas de fazer com que tudo batesse certinho. Tinhas de fazer com que tudo fizesse o mais certo dos sentidos e que os meus sentidos ficassem todos trocados. Tinhas de fazer com que tudo fosse mágico e inesperado, ou não me pertencesses.
E eu chego a um ponto em que já não sei se sou eu que te faço acontecer ou se aconteço por causa de ti. Eu chego a um ponto que não sei se sou eu que fantasio com tudo sintonizado ou se, efetivamente, tudo está em sintonia. É escusado: não resisto à minha resistência, não resisto à tua invasão. Mas, em minha defesa, tu aconteces com tanta intensidade que me perdes, me elouqueces, soltas e me envolves num mundo perigoso que achei conseguir dispensar.
Já que te complicas tanto, podias facilitar-te-me a mim, não?! Podias mostrar-me um pouco do que pretendes, podias acontecer devagar... podias fazer o meu corpo não ceder às tuas vontades, podias fazer o meu sorriso ser desenhado só quando fosse seguro e fazer o coração bater sem fazer barulho, sem que todo o mundo soubesse que ele está a bater tanto, pelo que tu fizeste, de novo, acontecer. Podias, ao menos, deixar-me prever-te para me preparar. Podias preparar-me para ti. Podias responder-me a algumas coisas, deixar-me esclarecer alguns dos pontos de ti que precisam de definição clara.
Podias, por favor, às vezes não ser tão confusa? É que há coisas que são óbvias que eu não percebo como deixo que aconteçam.
Claro que a saudade aparecia, claro que os pensamentos eram inevitáveis... claro que depois de teres acontecido e teres tomado dois caminhos diferentes, era anormal se isso não acontecesse.
Claro que a ideia de nos cruzarmos me assustava.
E claro que eu não sabia assim tão bem se queria ir como como queria que as memórias e o coração fossem. Claro que foi intenso e que por isso não iria desaparecer assim. E claro, claro que não podia ir! Não podia ir - não completamente. Como poderia ir se a ideia seria voltar?!
Claro que não foi, porque nunca fez o que eu queria.
E, para mal dos meus pecados e do meu coração, ainda bem.